04 março 2011

Sou(M)

Sou, na quietude do silêncio deste espaço vazio de tempo.
Escuto o som das palavras na memória do sabor que deixaram na boca.
Escuto e silencío no meu corpo, esse odor, essa cor, esse som.
Que sentido no toque? Vibração condensada em limites de significado, significante...
Que sentido escolhemos ser, aqui, no momento do agora em que escolhemos ouvir, de novo, o silêncio das palavras, sem forma, sem cor, em aromas mil de distantes desejos de querer... de distantes sonhos...
Apenas memórias de um futuro que é sempre futuro, sempre a um passo de ser, de alcançar... Som... Vibração...
Sinto na pele essa manifestação física da criação eterna.
Sinto, permaneço, escolho perscrutar-lhe o sabor doce, salgado, por vezes amargo.
Escolho contemplar a cor dos seus contornos, a luminescência da sua essência.
Sou, aqui, no silêncio deste corpo que se encontra, na vibração silenciosa de outros corpos, de outros ecos, a sul do toque de outras manifestações tão reais e ilusórias quanto... Sou.
E as palavras perdem o sentido, o som, a vibração, perdem a cor e o sabor, perdem o tacto, o cheiro... ecos esfarrapados, cirros voláteis num imenso e distante azul...
Sou, e quanto sou se não me crio a cada instante, relembrando a urgência de me ser, aqui...
Sou, em gestos fugazes... sou a criação e o infinito plausível, sou... Som...
Esse som que vibra em todas as coisas, e das entranhas me faz ser em todos os sentidos manifestada, e vejo no espaço dos meus braços em amplexo,
O infinito ser de todas as coisas.

03 fevereiro 2011

Dentro deste quarto

Sinto-me hoje como ontem.
Vejo os dias a passar-me através da janela deste quarto.
Deste quarto aparentemente efémero, onde tudo é branco, 
Onde tudo é branco numa vibração intermitente, aparentemente contínua. 
 
Todo o tempo é circular e circula, lá fora, fora das janelas deste quarto
Onde as árvores nuas me sorriem, livres.
O tempo parece circular, mas aqui, onde tudo é aparentemente branco, o tempo
Circula dentro de si mesmo, o tempo é uma pescadinha-de-rabo-na-boca,
E não sai do mesmo sítio, onde tudo, aparentemente, parece não acontecer...

Viajo, viajo dentro deste quarto para todos os mundos e tempos,
Para todos os momentos e ausências, para todas as alegrias e tristezas.
E por vezes choro, e sinto que sou livre, mesmo aqui,
Neste quarto, branco, intermitente, onde não me posso mexer,
Sei que sou livre...

Viajo e voo com as aves e migro,
Lá para onde o sol ainda é quente e o vento frio ainda não chegou.
Mas o meu corpo tem sede desse vento frio
De sentir esse frio que toda a gente diz sentir, para se poder agasalhar e ter prazer
Em se agasalhar e ter prazer em estar quente, porque lá fora,
Está esse vento frio, que as árvores nuas abraçam, serenas, sorrindo, ao sol.

O vento frio lembra-nos o calor do Verão e faz-nos ansiar por ele... e
De olhos fechados eu anseio...

Sinto-o, o calor, na minha pele, nua, e viajo,
De olhos fechados, viajo dentro deste quarto, por todas as paisagens do mundo,
Corro, rio e sou livre, sinto o vento na minha pele e canto, danço, e sou livre, o sol,
Na minha pele... nua, como um rio, que viaja, solto, pulsando de vida, correndo o mundo...
Livre... dentro deste quarto...

19 setembro 2009

Poema ao entardecer

Ao entardecer da memória, viajo pelas palavras
Que em vão deixámos escapar sem sentir, não
Isentas de sentido. Um sentido no interior de nos sermos
Nos sentidos que fomos escolhendo ausentar de termos
Para que ao sermos, não nos confundíssemos com a matéria errante
Em dissoluta vontade de se ser
Incessante.

Fomos, tu e eu, inocentes no desejo e no prazer de apenas estar
E ser sem conhecer, a imagem poluída dos pensamentos alheios
Que premeiam o acontecer rotineiro e fastidioso dos dias circulares
Impermanentes no querer.

Fomos, tu e eu, grandiosos nos gestos e palavras que trocámos
Antes das marcas de passados, que de gastos, velhos e puídos,
Tentámos embelezar numa vã reciclagem. Mas ao invés,
Não serviram mais que o enganoso propósito de sermos maiores
No espelho da nossa vaidade.

Fomos, tu e eu, presas fáceis nos dentes da vulgar realidade
Ou da vulgaridade real, de querer empreender sem projectar, um Amor fiel…

Imperfeito imaginário num querer só por querer.

Bebemos o silêncio expectante dos dias frios em que nos ausentámos mil vezes.
Bebemo-lo sozinhos,
E sozinhos ficámos por dentro e por fora.

Sozinhos, errámos o caminho pelas curvas da não-dor
Sorvemos o vazio em tragos lentos e construímos armaduras.
Fomos amantes, fogosos, fugidios e fugazes
Fátuos e ausentes da verdade de sermos, a tempo inteiro, apenas nós.

Hoje somos errantes.

Procuramos, ansiosos, em destinos laboriosos, e mais que tudo, enganosos,
Como os saldos de fim de estação, uma felicidade forjada em vontade alheia.

Alcançaremos as rosas, sem os espinhos, antes que a maré dos dias se torne
Ofegante?
Alcançaremos esse mar, essa liberdade insana, que da existência apenas nós acreditamos?
Que almejamos nós afinal, que não seja apenas morrer, num fim de tarde estival,
E esquecer?

E antes que da tua boca ressoe um eco do meu querer, soltemos as asas
Que tarda o amanhecer…

… não vá na espera acontecer os pássaros apodrecerem nas árvores.

10 agosto 2008

Canto de Mim Mesma



“Hoje, antes do alvorecer, subi a uma colina e olhei os céus e as constelações,
E perguntei ao meu espírito: Quando abraçarmos essas orbes, quando tivermos
o prazer e o saber de quanto nelas há sentir-nos-emos realizados e satisfeitos?
E o meu espírito respondeu: Não, se alcançarmos esses cumes é só de passagem,
é só para continuar mais além.”


Walt Whitman
In Canto de Mim Mesmo

I

O sol estendeu-se sobre a minha pele como um amante fugaz
Senti-lhe no toque a memória do teu corpo, morno.

Adormeci sozinha ao sabor do vento
Como um sonho leve.
Um aroma doce nos lábios.

Viajei por recantos dos teus olhos,
Lápides negras de desejo insatisfeito.
O som do teu olhar era um grito mudo.

O mar da tua pele…

Pequenos labirintos de nada, repetem-se em movimento convergente
Num ponto de fuga, onde termina a estrada dessa memória longínqua.

Sabor a mar
Sabor a ti, no mar do meu corpo
Profundo.


II

Cresci na ponta dos teus dedos infantis.

Andei pelas ruas escuras da cidade
Tantas vezes adormecida de me ser.
Embates transversais de encontro a outros corpos, desconhecidos
Vazios de interior, ecos de vozes antigas,
Sozinha tantas vezes, enquanto o teu corpo repousava, jazente
Nos lençóis da nossa alma única

Pintada em tons de pavão de guerra
A minha pele cresceu a oriente da tua vontade.
O teu fim foi o princípio dos tempos
Uma glória partilhada na fome dos deuses.
A Vontade era nua, o tempo, ausente
E, na fome dos teus olhos
As minhas mãos pariram o desejo do teu corpo.

À morte anunciada seguiu-se o estio
E o sol dourado despia-me vagaroso.

Nua de mim, ausente
Deixei-me adormecer num campo de trigo
Deixei-me adormecer sozinha.


III

Tive um sonho sem tempo
Um sonho de trigo dourado.
Os pássaros debicavam os teus olhos vazios,
De vidro negro lapidar.
Ouvi o som da tua voz…

Quatro livros negros com letras alvas de amanhecer
Cantavam a Vontade
Cantavam a Lei
E a Lei era uma palavra proibida
Era cinzas…

Adormeci sozinha numa sala vazia.
O sussurro das páginas escritas roçava na minha pele.
Sono inquieto,
Sonhos de limbo e ausência.
Os livros cantavam a Vontade
Cantavam a Lei
E a Lei era silêncio…
Sentido proibido em direcção ao destino.

Anjos pousaram à minha cabeceira
Encheram de luz o sal da minha pele
E toda eu cresci em estrelas no céu profundo e negro
Num dossel de espinhos doces.
E nas rosas um sabor amargo…

O toque dos teus lábios
Era a cor desse desejo.


IV

Quem pôs a roda em movimento?
Perguntaram incrédulas as vozes do meu submundo…

Quem ousa desafiar a Lei?

Em espasmos de espuma corrosiva, deixei-me adormecer sozinha.

O Tempo era agora sem nome
O Espaço um conceito vazio.

Cresciam nas paredes fungos venenosos de cores sensuais.
Olhavam-me penetrantes.
Quase imperceptível o seu canto hipnotizou os meus sentidos,
Segredos insuspeitos em filamentos húmidos de cheiro forte,
Penetrantes.
O meu corpo fingia uma inocência inacabada
Abandonei-me, nua, à Vontade de Ser…

Bebi sôfrega, o colorido venenoso, com abandono, no olhar vendado.
A minha língua penetrada, penetrava
Esse sabor doce amargo e caí, num sono profundo
Em miríades de cores dançantes, ao centro de lado nenhum.

E os livros, em litania, continuavam
Cantavam a Vontade
Cantavam a Lei.
E a Lei era silêncio proibido…

As vozes em tumultuoso turbilhão evocativo
Soavam incessantes. Vozes,
Cores, mil, o céu tingido de trigo.
O campo era agora o deserto escaldante que me escorria pelas mãos
Escorria-me pelas mãos vazias.

O tempo era antes do Tempo…

Mulheres cantavam a areia colorida que me escorria entre os dedos,
Os insectos respingavam os seus zumbidos,
E o canto era um harmónico leve, leve, leve
Leve como um beijo doce…

Levemente adormeci
Adormeci sozinha, num beijo doce
Sozinha, dentro de um sonho…

E o canto, em crescendo, brilhou intenso, penetrante.
Entrou pelo céu adentro, rasgou em mil pedaços a cor da ilusão,
Amálgama colorida, celestial.
Os insectos principiaram em escorrer pelo céu
Que se encheu de peixes cinzentos-prateados
E cada peixe continha em si, em proporção dourada, outro peixe,
O seu ventre, à sua imagem, e sempre assim
Até ao infinito, como uma porta que se abre ao espelho
Do não-tempo e se repete, eternamente
Sendo, sem nunca ter sido.
E nenhum peixe tem consciência do outro,
Nenhum peixe tem consciência de si.
E o céu rasgado era agora um mar de peixes cinzentos-prateados,
Prenhes de repetição, em proporção dourada, inconscientes de si…

E os insectos escorriam ao fundo do céu,
Escoavam verticalmente pelo horizonte.

O cântico, em crescente, puxou sobre si, bruscamente, o silêncio.
Vinha vestido de noite, e o céu prateava, em peixes de brilho sereno.

Fechei os olhos, em contemplação, e no vazio um vislumbre,
Da memória do teu corpo morno, entre os lençóis da nossa alma…

Em silêncio, adormeci sozinha, no canto do deserto
Pertinho do horizonte, onde os últimos insectos escorriam verticalmente.


V

A sala era ampla e amena.

Cravada do lado esquerdo, encimando o altar onde repousava o meu útero, uma janela manuelina convidava uma tímida lâmina de luz a entrar, sorrateiramente, sobre o trono de Amerene.

Deitada, sobre o chão de pedra quente, abri os olhos sobre o espelho de mão. Lá fora o céu entardecia desde há séculos no mesmo ritmo contínuo. Amerene bocejava. As aves do jardim simulavam um trilo, gritado em acordes de tédio, que impediam a tarde de cair, e permaneciam. Sobre o espelho, uma grinalda de flores silvestres sorriam, ambíguas.

Amerene deslocou-se até à entrada da sala, parando ao pé da porta entreaberta, num precipitado impulso de silenciar a voz dos livros, que ausentes de tempo e de maneiras, se impunham ecoantes pelos espaços espectrais das memórias do instante presente, Cantando a Vontade, Cantando a Lei.

Amerene voltou ao seu trono em passo rápido, com o seu corpo escamoso rente ao chão. Sentou-se, flectindo as patas articuladas e sorriu num tom castanho-acinzentado, o seu olhar perscrutando o meu, que era agora interrogativo, e com a serenidade do desencanto, enformado pelas convenções sócio-delimitativas da psicose urbana, entoou um pensamento em resposta:

The return to innocence…

Para lá da porta de entrada do templo a luz era outra e o Tempo fluía, ninguém sabendo dizer para onde ia.

De pé, de perfil, em frente à porta, uma gravidez avançada era a qualidade da mulher que deixava antever a repetição das portas até ao infinito, sempre na proporção dourada, sequencial, como outrora os peixes, de Fibonacci.

Deixei-me dormir, sozinha. Amerene havia-se retirado e na mão, que era minha, um estranho objecto verde representava cinco funções desconhecidas, que só o guardião saberá, um pouco à imagem das chaves do mundo superior, apenas com aspecto menos celestial, mas inqualificável no tempo.


VI

Sonhei sem rosto do passado a acompanhar-me. Apenas eu, sozinha, no deserto do teu corpo aqui.

O céu incandescente ofuscava a areia escaldante debaixo dos meus pés feridos. Caminhei ausente de dor, impassível, entre laranjas e vermelhos vivos, serpenteantes, como um cenário psicadélico, ao mesmo tempo dormente e ausente de sensações.

Caminhei suave, sozinha. O eco dos livros, Cantando a Vontade, Cantando a Lei. E a Lei fi-la silêncio, por mim.

Prossegui decidida a encontrar o trono cor de terra que haveria de levar-me ao templo de Amerene.

Ao fundo avistavam-se mil gotas de um líquido brilhante, mercurial. Aproximei-me, focando o lago de prata, onde os touros sagrados se vinham para alimentar as areias quentes do deserto do corpo que era agora meu. Escolhi um touro lunar e montei-o com o corpo nu apoiado no seu crescente sagrado.

O sol estava diluído no céu. Não se viam mais que ondas de cor que modulavam as temperaturas dos nossos corpos desertos. Caminhámos lestos. O ritmo do animal sagrado despertou o meu olhar para o brilho ambarino da sua pelagem, e o meu corpo deixou-se conduzir nesse fogo inebriante e todo ele era êxtase chegados à porta do templo.

Parámos junto às colunas verticais que se erguiam, confundindo-se com a areia, ladeando uma entrada escura, que prometia uma frescura repousante. Avançámos sem tumulto, à espera de nada. Um leão azul guardava a entrada do templo. Disse-lhe que Amerene me esperava e avancei por mil portas repetidas, sequencialmente, como se o infinito de facto, não tivesse fim. Ao fundo, a mulher grávida permanecia no momento presente, algures num tempo qualquer, sempre grávida, sempre grávida, sempre mulher.


VII

Adormeci sozinha, numa sala vazia de ti.
O sussurro das páginas escritas roçava-me na pele.
Os livros, em litania, Cantavam a Vontade
Cantavam a Lei.

Anjos pousaram à minha cabeceira, no altar, onde repousava o meu útero.
No leito de pedra quente, onde deitara o meu corpo, um espelho de mão sorria-me, ambíguo, com uma grinalda de flores silvestres,
E Amerene dançava à minha volta, com as suas patas articuladas, contemplando sôfrego, o meu corpo nu.
E cantava, como um eco longínquo que atravessa todas as eras:

Eu sempre vivi na Lei do Amor.


VIII

Como quem tece e entretece a teia do mundo,
Um fio de sol irrompeu decidido por uma fresta da janela manuelina
E estendeu-se sobre a minha pele,
Como um amante fugaz.

24 abril 2007

Ambiguidades de café …

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Ambiguidades tardias
Como pedaços de chuva grossa, num fim de tarde de Verão,
Afastam o estio nauseante, da pele
Fustigada num sonho de Outono, em memórias furtivas…

Caminhantes estranhos de mundos estranhos, ausentes de si
Estranham-se e entranham-se nessa pele…

Ambiguidades de café…

Diáfanas mãos entrançadas… gestos e olhares cruzados numa chávena quente
Que pretende afastar… O Verão?

Esse sol tardio que teima em queimar
Em raios radioactivos de sangue, nas velas dos mortos citadinos de olhar cheio,
De um nada rico e vivo...

Ambiguidades de mãos cheias, de mãos dadas, em ruas transversas…
Ambiguidades seculares
Genetizadas na memória colectiva de um tempo sem paralelo…

– Queres mais um café? Perguntas-me com o ar de quem mais não tem para dizer…
Levanto-me e saio sem responder, para a chuva quente de Verão, e
Banho-me com prazer saudoso…

Ambiguidades nos nossos nomes, anónimos
Ao mundo que nos pariu...
Ambiguidades de sermos alheios e vazios do redor de nós…
Ambíguos…
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